quarta-feira, 4 de novembro de 2009

OLHOS TRISTES...

Todo o advogado que se preze conhece a Desembargadora ora aposentada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Doutora Maria Berenice Dias, assim como tem ciência sobre seu pioneirismo entre matérias corriqueiras até as mais polêmicas.

Não se trata de bajulação, muito pelo contrário, citei a Doutora Maria Berenice Dias, primeiro por admirar muitíssimo seu trabalho, segundo por atuar na área de direito de família, sucessões, adoções nacionais e internacionais e terceiro por ela ter tido coragem de se posicionar em assuntos que muitos desembargadores considerados sapiências e compêndios jurídicos ambulantes não tiveram coragem de enfrentar matérias as quais a ilustre doutora atuou com brilhantismo. A mesma ainda é autora de uma das frases mais marcantes durante minha carreira como advogado militante: “O aferto merece ser visto como uma realidade digna de tutela.”

Por que fiz essa pequena introdução? Vou contar para vocês uma história que começa mais ou menos assim...

Se não me falha a memória, deve ter sido no ano de 2002 ou 2003, enquanto cursava direito na PUCRS, fomos convidados a visitar um dos muitos abrigos destinados a crianças abandonadas aqui em Porto Alegre. O local é conhecido como “Abrigo Residencial 09-NAR Intercap”, que fica na Rua Ângelo Barcelos n° 439, Bairro Partenon, Nesta Capital, cuja idade dos abrigados varia de 0 a 18 anos.

Ao chegarmos no referido local, eu e mais alguns colegas de faculdade fomos imediatamente cercados por dezenas de criancinhas, nenhuma delas aparentava mais de 6 anos, todas das mais variadas etinias. Todas elas esboçavam naquele momento inicial, um incondicional sorriso de ternura, o que atualmente compreendo como um sorriso de esperança de serem levadas para casa por um casal que realmente as queira como filho(a).

Foi quando uma menininha me abordou, ela não deveria ter mais que 5 anos, e ao mesmo tempo em que alisava seus cabelos com uma mão e mantinha um dedo da outra mão na boca, no meio de um sorriso disse: “tio, tu veio aqui pra me levar pra casa?”

Tentando ser o mais sutil possível, dizendo que não, que havia ido ao abrigo para visitá-la, assim como seus coleguinhas, e que sempre que ela quisesse o “tio” viria visitá-la.

Qual não foi minha surpresa ao notar que ela baixou seus olhos tristes para o chão e deu de ombros, terminando a breve conversa com um “aaaahhh, ta bom” e aos poucos foi-se afastando. Notei que as outras crianças que conversavam com meus colegas universitários estavam tendo o mesmo comportamento.

Voltei para casa naquele dia me sentindo a última criatura na face da terra por ter sido colocado frente a frente com uma das mais duras faces das relações humanas: o abandono. Da mesma forma, fiquei comovido pela forma que seres humanos tão pequenos já tem consciência da realidade nua e crua que lhes é impingida, como se fossem parias de nossa sociedade. A sensação de quase impotência diante de uma situação daquelas variou entre a tristeza e a mais profunda revolta.

Contudo, agradeci muito ter nascido no seio de uma família estruturada, com pais exemplares, que criaram a mim e meus dois irmãos com todo amor, carinho, esmero e dedicação, sentimentos estes que literalmente são negados e tolhidos a essas crianças, que estão nesses abrigos ou por abandono ou por maus-tratos.

E o porque de todas essas linhas?

Primeiramente é para criticar aqueles casais que mesmo impossibilitados de terem filhos, ao buscarem uma criança para adoção como ultima opção para realizarem o sonho de serem pais, tem a pífia idéia que literalmente entrarão num supermercado, onde as gôndolas e prateleiras estarão recheadas de bebês ou criancinhas loiras e com olhos verdes ou azuis.

Ledo engano. A maioria dos abrigos de Porto Alegre, assim como os abrigos no Rio Grande do Sul e Brasil afora, estão abarrotados de crianças de várias raças e idades, que não se encaixam no “padrão europeu” buscado por muitos casais. Até quando vai durar essa hipocrisia?

Segundo, é a própria morosidade do Poder Judiciário, onde graças a Deus, o Judiciário Gaúcho é uma salutar exceção.

A própria Lei da Adoção (Lei n° 12010/2009) em seu texto objetivou uma sensível diminuição acerca da rede de burocracia aonde crianças e adolescentes abrigados se encontram emaranhados. Como todas as leis de nossa nação, ela está cheia de boas intenções, mas infelizmente, de boas intenções o inferno está cheio.

A Lei tem oito artigos. O primeiro dispositivo confessa que a intervenção do Estado é prioritariamente voltada à orientação, apoio, promoção social da família natural, junto à qual a criança e o adolescente devem permanecer. Somente em caso de absoluta impossibilidade, reconhecida por decisão judicial fundamentada, serão colocadas em família substituta, adoção, tutela ou guarda. O artigo segundo introduz 227 modificações no ECA. Com a alteração de dois artigos do Código Civil (1.618 e 1.619) e a revogação de todos os demais que tratavam da adoção, acabou antigo impasse. Agora a adoção de crianças e adolescentes é toda regulada pelo ECA. A adoção de maiores de 18 anos deve seguir os mesmos princípios, e depende de sentença judicial. Também é alterada a lei que regula a investigação de paternidade (L 8.560/92) para dispensar a ação investigatória quando o genitor não assume o filho e a mãe deseja encaminhá-lo à adoção. E, talvez a medida mais salutar: são eliminados os prazos diferenciados da licença-maternidade a depender da idade do adotado (CLT 392-A §§ 1º, 2º e 3º) (“O lar que não chegou”. Maria Berenice Dias. www.mariaberenice.com.br) .

A princípio, a conclusão mais lógica e euclidiana é a de se pensar que todos devem crescer e se desenvolver junto ao seio familiar de origem, junto aos seus pais biológicos, que muitas vezes são absolutamente incapazes de promoverem a criação de seus filhos, motivo pelo qual muitas vezes essas crianças e adolescente vem a ficar sob a tutela do Estado para que seu próprio bem-estar físico seja garantido.

Entretanto, os velhos entraves burocráticos colocam a celeridade da Lei de Adoções em xeque.

Outro detalhe que merecia atenção e foi abordado pela nova lei foi o instituto da adoção internacional, de fato, carecia de regulamentação. Mas está tão exaustivamente disciplinada, há tantos entraves e exigências que, dificilmente, conseguirá alguém obtê-la. Até porque, o laudo de habilitação tem validade de, no máximo, um ano (ECA 52, VII) e só se dará a adoção internacional depois de esgotadas todas as possibilidades de colocação em família substituta brasileira, após consulta aos cadastros nacionais (ECA 51, II). Depois a preferência é de brasileiros residentes no exterior (ECA 51, § 2º). Assim, os labirintos que foram impostos transformaram-se em barreira intransponível para que desafortunados brasileirinhos tenham a chance de encontrarem um futuro melhor fora do país.
Tal qual leciona a Doutora Maria Berenice Dias, a adoção transformou-se em medida excepcional, a qual deve se recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança e do adolescente na família natural ou extensa (ECA 39, § 1º). Assim, a chamada Lei da Adoção não consegue alcançar os seus propósitos. Em vez de agilizar a adoção, acaba por impor mais entraves para sua concessão, tanto que onze vezes faz referência à prioridade da família natural.

Eu, como advogado militante, quando contratado para fazer um processo de adoção, tento agilizar o feito o máximo possível, simplesmente pelo fato de pensar que mais uma criança vai deixar de ser tutelada pelo Estado dentro de um abrigo onde a tristeza impera, ao mesmo tempo que a mesma vai passar para os ansiosos braços de um casal que realmente almeja ter uma criança para amar e proteger, completando suas vidas dessa forma.

Ainda devemos manter a esperança e nos esmerarmos nesse sentido, o de aumentar ainda mais as adoções em âmbito nacional e internacional, pois assim procedendo, estaremos colocando alegria e mais vontade de viver nos olhos tristes de muitas crianças e adolescentes Brasil afora.

Fazer o bem, sem ver a quem, sempre. Ver o brilho de felicidade nos olhos de uma criança não há dinheiro e nem mastercard nesse mundo que pague.

Pense nisso.

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